MAIS UM CÂNCER BENIGNO SOCIAL, Wagner Martins (Conto)


MAIS UM CÂNCER BENIGNO SOCIAL

 

Aprecio a minha cama até dez da manhã ou mais; passou-se das noites nos livros... Agora que a vida sorrir para mim, sinto um espinho crescente por dentro: posso fazer tantas coisas dignas de serem lembradas, de exemplos a serem seguidos; porém, essa história de deixar legado para a humanidade é para Ayrton Senna, e eu não creio em encarnação.

Meus ex’s e atuais empregados com olhar me fuzilam! Meu crime? Ter o salário mínimo muito me privilegiando com mão-de-obra-barata e sempre em abundância; tiveram outros que se sujeitaram por menos, — não os busquei, vieram com as próprias pernas. (justiça para pobre é lenta, lenta e falha. Também quem defende essa gente?! Os que abre a boca, na verdade, o que querem, é mamar da política.) Sendo assim, sou inocente.

Creio que, salário mínimo é dinheiro demais para uma pessoa “qualificada” em empregada doméstica. Por isso que, dou mais trabalho do que ela já tem: em seu olhar viro o diabo espertando o condenado, nesses seus momentos de lamentos:

— Minhas costas estão me matando!

Ou quando de instante em instante leva as mãos para costas por levantar o colchão grosso, pesado para varrer embaixo, quatro, cinco vezes na semana ou quando deixamos os calçados, as meias espalhadas nos vãos da casa para quem apanhar de um por um, adivinhe?! Passamos os dedos sobre os móveis, sugerindo que estão empoeirados, soltamos comentários sobre os temperos das comidas, sugerindo que ela não sabe o que faz; jogamos papel ingênito já usado no chão para quem limpar, adivinhe?... Minha mulher, sinceramente, é uma porquinha: quando menstrua, deixa as roupas íntimas para a outra lavar no chão do banheiro, haja sangue! Só falta a coitada limpar as nossas bundas... mas essa é a sina de quem pode e de quem precisa, num é.

            Sinto uma certa... digo... admiração?! Imagino que sim. Talvez, dessa gentalha: mesmo vindo todos os dias pela via dolorosa dos transportes públicos, das ruas perigosas ao trabalho; sendo espinhosamente coroada de injustiças, crueldade e humilhações pelos patrões‑frios‑soldados-romanos, (não sou tão assim.), e ainda sofrer nas cruzes nos fins dos dias de labuta — ainda reflete, ingenuamente, como luz de vela se acabando: um ar de honestidade, de dever cumprido!

            Levanto já para almoçar, a porquinha ainda fica lá no chiqueiro: Sente repulsa por mim, mas disfarça. Finjo de tapado, e assim fica tudo bem.

Meus filhos me amam, dou de tudo de melhor a eles. Confesso que, às vezes, sou meio ditador — exijo, grito, bato demais... espontaneamente planto neles o desprezo por mim — não sei abraçá-los, conversar mirando na bola dos seus olhos, (temo o que verei nas suas retinas); contudo, atire a primeira pedra o pai que seja perfeito!

            Basicamente, só saiu de casa para me socializar, “babar” pessoas grã-finas: feito cachorro farejando por filé-mignon... enfim, analisando o meu cotidiano: sou só mais um câncer benigno social!

 

- Wagner Martins

 

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

 

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