ARRANCADO DO CORAÇÃO, Wagner Martins (Conto)

 

ARRANCADO DO CORAÇÃO

 

As conversas de Rafaelly eram cada vez mais entediantes para ele, nos últimos quatro meses dos dez anos de casados, estava mais e mais irritado e numa missão secreta: procurava qualquer motivo de fuga para evitá-las; a voz dela ia se tornando insuportável. Todas as noites quando pensava em ir dormir, logo doíam-lhe os vinte minutos que era obrigado a virar “psicólogo” da esposa que, aparentemente tinha traumas eternos e sem soluções! (pois, ela não queria ser ajudada, nunca quis, mas sim aumentar a imaginável e terrível carga, carregá-la demonstrando todo sofrimento do mundo, e por esse espetáculo “heroico”, ganhar aplausos. Algumas leis da alma feminina estão longe da compreensão masculina, “não digo que sejam insanas!” como também não podem ser mudadas; é melhor submeter-se, aceitá-las e quanto antes para ter paz! Vocês, homens, principalmente, “os machos alfas,” que estão lendo esse conto: ponham esse segredo que digo em prática. Abram mão da motivação pelo orgulho infantil de sempre provarem que estão certos nas discussões, por mais banais que elas sejam! De sempre quererem ganhar nelas, na força da razão, “não é brincadeira de cabo de guerra!”; e, verão se os portais do céu não se abrirão em seus relacionamentos; caso façam o contrário, os do inferno!); cada palavra ouvida, eram como pregos que iam perfurando o crânio do marido!

Como entender essa mudança de comportamento do André? Essa impaciência que estava aumentando no relacionar-se com Rafaelly? Apesar de ela sempre dar-lhe, antes dessa anormalidade que vinha crescendo, nota dez na cartilha de BOM MARIDO; e ao longo desse tempo, nunca demonstrou nenhuma inclinação para ser adúltero. Antecipo essa informação sobre o seu caráter, minhas caras leitoras, para evitar que vocês virem julgá-lo sem bata, sem aquele martelinho de madeira e sem carteira assinada de juízas! Dele, por esse tempo, jamais veio uma pequena ação suspeita capaz de chamar atenção. Afirmo isso, porque, se o seu coração fosse um quarto de motel, daqueles para nos entregarmos aos prazeres carnais: seria tão luxuoso, mais tão luxuoso, que na cama só caberia ele com ele mesmo! Então, o que a motivou? Para a esposa, poderia ser devido a todas as horas extras que vem obrigatoriamente trabalhando quase a semana inteira.

 

***

 

No escritório da empresa, na hora vaga, estava focado, revisando o que fez. Veio uma colega desabafar, como sempre, sobre o dilema que enfrenta no relacionamento desigual com marido indo de pior a pior:
            — De novo! Ele chegou duas horas da manhã…
Já com os olhos lacrimejando.
            — O que disse? Ah! Quanto você sofre! Mesmo após tanto, amiga… aceita que doí menos. Isso mesmo. Ouça: o ser humano é forte o bastante para suportar tanto sofrimento, basta… ou pula do barco, esse está furado e naufragando! Pule! Pule antes que nasça um que será herdeiro das consequências do adiado naufrágio! Como muitos por aí!
            Ela, o encarando por alguns segundos, surpresa por ouvir isso, feito um soco na sua face, justamente naquela voz! Que soava sempre amigável, compreensiva; agora, brutalmente insensível! Levantou-se da cadeira e saiu. 

 

***

 

Uma vez, esse homem acordou uns trinta minutos antes do habitual para arrumar-se e ir trabalhar. Bruscamente montou naquele corpo delicado e excitante, ao seu lado. Começou a fazer sexo, porém, não feito antes: com carinho e ternura; com cobiça, não aquela de desejo do homem pela mulher; mas a de um leão selvagem, faminto por muitos dias, atacando diabolicamente a sua presa no pescoço para logo a abater. Enquanto isso durava: o caçador refletia no olhar um prazer extremamente individualista. Rafaelly por não reconhecer ele nele mesmo, nesse ato tão vazio de sentimento: depois que a criatura saiu monstruosamente satisfeita. Ficou lembrando da cena que viveu. Agora, toda encolhida, com as mãos na cabeça, balançando-a de um lado e outro lentamente; sentindo-se uma boneca inflável usada. A perguntar para o reflexo de si no espelho do quarto, no momento, esse, bastante sombrio do que a sepultura: — O que fiz, o que aconteceu para que um ser humano racional, antes dotado de afeição, está transformando-se nisso? Uma besta-fera?

 

***

 

            Passaram alguns dias, ligeiramente foi espalhada entre os colegas de trabalho a notícia da sua assustadora e inesperada insensibilidade, igual a carrapato em cachorro pulguento de rua. Essa foi comprovada, graças a como ele tratava a tais ultimamente: com aspereza, desprezo, superioridade; contudo, sem falsidade, transparente, direto; e em seu ofício, era cem por cento eficaz, movido por uma espécie de orgulho, competição excessiva! Qualquer atividade que não fosse em relação a trabalho, nesse ambiente, para André, era vista como pecado mortal, sem perdão!

Ninguém, absolutamente ninguém mesmo sabia de como veio esse ser tão horroroso e detestável de uma criatura, antes, tão linda e amável!

Nada aconteceu em sua vida, principalmente no campo das tragédias, para isso ter uma aceitável explicação. Como um relógio perfeitamente funcionando, porém, um dia, o principal ponteiro, o que marca as horas, enferruja-se e quebrasse e mesmo assim continuou a funcionar, não como antes. Assim posso dizer do André. Isso faz perguntar-me se, desse jeito, o tal objeto serve para ser ainda relógio? Também pergunto a vocês, se uma pessoa, do jeito que esse está, serve ainda para continuar sendo ser humano?

 

***

 

Ainda na empresa: o chefe não sabia da mudança de “humor” do seu trabalhador que sempre pôde contar com ele nas horas cruciais. Mesmo sabendo que ainda devia a André inúmeras horas extras, pediu-o que ficasse mais umas duas para organizar a papelada:

— Meu caro amigo! Seja mais uma vez o meu super-herói, salve a empresa!? Tem é coisa para organizar…

Nem terminou o clamor por salvação.

— Me dê razão para eu desperdiçar o meu precioso tempo arrumando as “cagadas” que os lixos dos teus empregados fizeram? Os quais, em grande parte, são lixos descartáveis por serem tratados como tais: não dão o melhor deles por trabalharem sob pressão e ameaças; invés de serem incentivados se o senhor permitisse que desfrutassem também do progresso dela graças aos esforços desses mesmos. A sua pessoa mesmo, com atitudes movidas pela ganância de forma errônea, vem sendo cada vez mais IDIOTA! Não tenha a minha sinceridade como ofensa! Voltando ao assunto: aliás, o senhor é homem de negócios. Sabe que tempo é dinheiro. Por ter sempre necessidade dele, sou mais um escravo, que, somente por isso, deixo-me ser para ti, o burro de carga que tantas vezes, o dono encosta na traseira do animal, fogo, para forçá-lo ao máximo… chegou a minha hora. Fui. Amanhã não venho, desconte do que me deve!

O patrão ficou decepcionado e sem reação, como muitos ladrões de geladeira, por aí, que de madrugada vão saqueá-la, esperando ter um pedaço de torta de outra pessoa, achando o lugar vazio. 

 

***

 

            Sentado no sofá, curtindo a sua folga tomada à força, assistindo uma programação que o prendeu. Daí a sua filha de dois anos começou a chorar. Pensou acalentá-la, mas, naquele momento, não teve vontade de fazer isso. Precisava de silêncio! Precisava que ela calasse! Foi apressado ao berço, a expressão facial dele, com jeito de andar determinado, causou-lhe pavor: vinha com uma aparência como se estivesse usando uma terrível máscara, escondendo dela, o pai. Achando-a nele a personalidade de um estranho frio e calculista. Como calculista, sabia exatamente o que iria fazer: a envolveu em seu colo, com a mão tapou a respiração da criança, com a outra, sentia o pulso. Meus caros leitores, companheiro de aflição por sermos, de certa forma, testemunhas do que nos parece um assassinato a sangue-frio! Acreditem! O André, apesar de tudo, é incapaz disso. Sou o narrador onisciente de primeira viagem, mas sei qual é a sua intenção nesse exato momento. Resistam ao impulso de fazer justiça em irem chamar a polícia! Fazer denúncia enganosa é crime; a não ser, nessa ocasião, por maltrato. Mesmo assim, seria criminosa, pois, isso não passa de uma ficção malfeita!
Já desmaiada, foi botada onde estava. Aquilo que não tinha nada a ver com o pai-coruja que sempre foi, agora, sentindo uma felicidade somente sua, voltou a fazer o que tentava, sossegadamente!

            Refletia consigo com toda sinceridade: “Para quê ter filha? Gastos quase sessenta por cento da minha vida trabalhando para ter dinheiro e gastar novamente quase tudo para criar esse ser vivo: em saúde, educação, roupas, lazer; suportar choro, malcriação, mau-humor, histeria, ingratidão; em troca de quê? Presentes de papelão, ou algo desse tipo, descartáveis, no dia dos pais, anos após anos… e quando vai crescendo, na adolescência, por exemplo: nos têm como simples caixas eletrônicos, só vem a nós para sacar o que não fizeram para merecer; contudo, alegam que não pediram para vim à Terra! Após tanto investimento, simplesmente, um cheio de hormônio, tira a bonita cabrita do nosso cercado, e em muitos dos casos, para maltratar! Quais são as vantagens de ter filhos? Principalmente filha? Lembrei: têm alguns povos sábios nesse assunto, na tradição deles, o pai ganha dote do futuro genro. Nada mais justo! Muito diferente do nosso costume… já eles, na nossa velhice, quando mais precisamos de tais: abandonam os pais nos asilos, fazendo desses lugares, depósitos de esquecidos, pois, nós, já não cabemos na vida deles! Ainda têm “os ingênuos” sonhando com a paternidade!”

— Que me jogue logo na cova, então! — declarando com ódio para si.

            Na TV, mostrava uma reportagem: uma prisão de um matador de aluguel por matar o pai de família; essa, pedindo justiça. Que o acusado passasse a vida toda preso! A ex-esposa do defunto, declarando ser ele que sustentava a casa!

O nosso telespectador, assistindo isso, a atitude da família no calor da emoção, ficou revoltado pela tamanha comoção! A sua análise foi essa:

“O marido dela já estava morto; por mais anos que o outro passe preso, não teria ele ressuscitado. Então, ela deve não só buscar a eterna exclusão do acusado e de quem o contratou. Como também ser indenizada pela perda: as autoridades deveriam leiloar todos os bens materiais deles, e se estivessem pagos algum tempo de Previdência Social, ou se tivessem causas na justiça e ganhassem, ou herança, viessem ser dadas a família vitimizada. Tenho a certeza que o pobre defunto concordaria comigo pelo bem dos seus amados que aqui ficaram. Como, porém, geralmente é, a realidade é outra, o governo paga a família do prisioneiro uma quantia de dinheiro mensalmente, como um ato de recompensa?!”

 

***

 

            Como vocês mesmos podem imaginar, a convivência do André com os seus semelhantes, ficou… como posso descrever… inaceitável, intolerável?! Não sei se essas palavras descrevem bem a sensação de quem foi obrigado a estar com ele ao menos meia hora; mesmo com toda sua formação, com seu senso de justiça, de comprometimento. Tinha algo nele que, na mesma forma de uma fogueira, após consumir a lenha, vai apagando, ele foi perdendo “a habilidade” de perdoar, de compreender as falhas dos demais! Foi “desaprendendo” a ser amigo, marido, pai, de ser pelo menos um alguém para alguma pessoa, até de ser feliz; estava sempre mal-humorado, amargo, difícil de ser experimentado! Simplesmente não dava para relevar as atitudes tão desumanas desse novo eu dele. Quando vinham conversar com o tal eram respondidos por sermões contundentes, certeiros, mas como falados por uma máquina inteligentemente capaz disso, porém, sem coração. Quase capaz, com suas palavras, fazer sangrar os ouvidos dos que lhe escutam!

Sua esposa estava a ponto de divorciar, mas queria ter realmente o motivo concreto, detalhado para isso e não tinha! Quando assistiu uma reportagem:

— Uma equipe clandestina de cientistas fez um número gigantesco de pessoas em vários estados do país em cobaias involuntárias, e vinha monitorando cada uma delas. O objetivo foi criar um produto que despertasse o máximo de cada indivíduo, tirando nele a capacidade de amar, na visão desse grupo: “o amor nos impede de nos superar, de dar o nosso melhor; esse sentimento é o nosso calcanhar de Aquiles, o maior ponto fraco da humanidade.” Querendo provar isso, ou seja, se aumentasse a produtividade, triplicasse os resultados positivos em atividades física e intelectual na vida das vítimas; venderiam essa vacina para empresas, para o exército, por exemplo. Um deles, chegou a declarar: “essa vacina seria um presente para a humanidade! Seria a fórmula dos semideuses, dos super-homens.” Confessaram que a que aplicaram, a duração do seu efeito era temporária!

 

- Wagner Martins

 

sexta-feira, 30 de abril de 2021

3 comentários:

  1. Parabéns pela criatividade. Continuo sua admiradora.

    ResponderExcluir
  2. O convívio em sociedade é algo que podemos chamar de: (ETERNA ESCOLA E/OU APRENDIZADO CONSTANTE), digo isto porque, em todas as fases de nossas vidas existem conflitos; Amorosos, afetivos, familiar, etc. Não importa, o que importa é: Como lidar com tantos? Muitos buscam escapatórias angustiantes e que muitas vezes os levam ao estresse geral, assim descontam em quem não merecia e acabam destruindo relações por não terem aprendido com o que vivenciaram. O ser humano é imprevisível, pode mudar da água pro vinho em dois tempos, caso não tenha autocontrole, pode acabar em ruínas ou como cobaia humana. Wagner Martins Martins, parabéns pelo conto!

    ResponderExcluir